O legado de Dubourdieu

by José Maria Santana | 02/08/2016 13:42

A morte do professor Denis Dubourdieu aos 67 anos, em 25 de julho, na França, é lamentada por todos os que, de alguma forma, acompanharam seu trabalho na Universidade de Bordeaux e no Institut des Sciences de la Vigne et du Vin, especialmente as pesquisas para melhorar os vinhos brancos, que inspiraram a vitivinicultura atual. Ele foi um homem de múltiplas culturas – engenheiro agrônomo, enólogo, pesquisador, pedagogo, proprietário de vinícolas. Mas era antes de tudo apaixonado pelas coisas ligadas ao vinhedo e ao vinho, com uma grande generosidade para dividir com os outros seus muitos conhecimentos, que repassava com palavras simples e precisas.

Dubourdieu nasceu em 1949, em Barsac, ao sul de Bordeaux, no Departamento da Gironde, de uma família de viticultores. Iniciou as pesquisas na universidade nos anos 1980. Estudou temas como a importância dos precursores dos aromas nos brancos e mostrou como produzir vinhos com finesse e complexidade aromática. Segundo ele, a definição de um branco de qualidade é simples: “Um bom vinho branco é aromático, frutado e deve ter capacidade de matar a sede”. Muitos produtores franceses reconhecem ter sido influenciados por sua obra e dizem que os vinhos brancos de Bordeaux podem ser divididos em antes e depois de Dubourdieu. Por isso a imprensa francesa o chamava de “o papa do vinho branco”.

Mas ele se dedicou também a outros assuntos, como os vinhos doces. Em parceria com Pascal Ribéreau-Gayon, escreveu um “Tratado de Enologia”, em dois volumes (Éditions Dunod). Em 2012, publicou “Autour d’une bouteille – L’oenologie dans tous ses états” (“Em torno de uma garrafa – a enologia em todos os seus estados”). Os livros, as pesquisas e os ensinamentos são, sem dúvida, seu maior legado.

Paralelamente, Dubourdieu era dono de vinícolas, que administrava com ajuda da mulher, Florence, e dos filhos Jean-Jacques e Fabrice. A família tem 135 hectares de vinhedos na zona de Barsac, distribuídos entre as propriedades Château Doisy-Daëne, Clos Floridène, Château Reynon, Château Cantegril e Château Haura. Por seu prestígio como especialista, também deu consultoria a várias casas importantes na França, como o Château d’Yquem, em Sauternes, e Cheval Blanc, em Saint-Emilión, e em outros países. Em abril último, já lutando contra o câncer, o conjunto de seu trabalho foi enaltecido pelo governo francês, que o premiou com a medalha da Legião de Honra.

O professor Denis Dubordieu esteve algumas vezes no Brasil, a convite das importadoras Casa Flora e Porto a Porto, que distribuem aqui os rótulos produzidos pela família dele em Bordeaux. Em todas as ocasiões mostrou muita simpatia e deu verdadeiras aulas sobre os temas que o apaixonavam. Ao passar por São Paulo, no final de 2007, fiz uma entrevista bastante didática com ele, que reproduzo agora pela atualidade dos comentários e como homenagem a este grande ser humano.

 

Denis Dubourdieu 2

Entrevista Denis Dubourdieu

20/11/2007

Por José Maria Santana

 

O papa dos vinhos brancos

Nascido em uma família de produtores de vinho na região francesa de Barsac, em Bordeaux, Denis Dubourdieu poderia ter seguido os passos do avô e do pai, dedicando-se apenas a administrar seus vinhedos. Mas quis ir além. Decidiu descobrir como os célebres brancos locais poderiam ficar melhores. Segundo ele, não mantinham a mesma regularidade a cada safra. Depois de se formar em Agronomia, Dubourdieu tornou-se professor no Instituto de Enologia da Universidade de Bordeaux, onde desenvolveu bem sucedida carreira de pesquisador. Deu seqüência à modernização enológica iniciada pelos notáveis pioneiros Jéan Ribéreau-Gayon e Emile Peynaud. Além dos brancos, estudou também os vinhos de sobremesa de Sauternes e passou aos tintos, sempre com a mesma preocupação científica. Simpático, educado e sorridente, Dubourdieu defende com franqueza e lucidez suas idéias e não poupa os vinhateiros que fazem afirmações sem nenhuma base. “A origem de sua certeza é a ignorância”, diz ele. Segundo o professor, um grande vinho, seja branco ou tinto, precisa ter quatro qualidades: boa imagem, preço correto, tipicidade gustativa e aptidão para envelhecer.

Mas não ficou apenas na teoria. Em paralelo à atividade acadêmica, comanda cinco propriedades, algumas herdadas de seus ancestrais, outras trazidas por herança de sua mulher, Florence, igualmente originária de um clã de vinhateiros. Assim, produz tintos, rosés e especialmente reputados brancos a partir da casta local Sauvignon Blanc, além de magníficos Sauternes. Representam o estilo Dubourdieu os brancos e tintos do Château Reynon; os sutis e ótimos brancos Clos Floridène; brancos, tintos e licorosos do tradicional Château Haura; e os Sauternes Château Doisy-Daëne e Château Cantegril. Dubourdieu tem uma relação especial com a propriedade Doisy-Daëne, pois foi lá que ele nasceu. Com as pesquisas, conseguiu elevar ainda mais a glória de seu Sauternes, 2º cru classé em 1855. Nas melhores colheitas, apresenta uma cuvée rara e sempre elogiada, L’Extravagant.

O trabalho do mestre repercutiu fora da universidade e ele foi convidado a dar consultoria para diversas vinícolas na França e em outros países. Nos últimos anos, começou a dividir a administração das propriedades da família com os filhos Jean-Jacques e Fabrice. Com isso, passou a ter mais tempo para fazer o que gosta, viajar e divulgar suas idéias. Em dezembro passado, por exemplo, esteve pela primeira vez no Brasil, a convite das importadoras Casa Flora e Porto a Porto, que distribuem seus vinhos. Dubourdieu surpreendeu-se ao encontrar aqui um mercado conhecedor e exigente. Nesta entrevista, o professor, chamado pela imprensa francesa de “papa do vinho branco”, também mostrou que teria muito a contribuir com os produtores brasileiros, já que as uvas brancas são um destaque na nossa vitivinicultura.

 

O que é um bom vinho branco?

Um bom vinho branco é aromático, frutado e deve ter capacidade de matar a sede. Para isso, é melhor não ser adocicado, nem muito alcoólico. E apresentar notas minerais. A sutileza e a complexidade são mais desejáveis que a intensidade e a exuberância, que podem cansar. Hoje vemos, por exemplo, Chardonnays apresentados como caricaturas, intensos, com açúcar residual e excessivamente amadeirados.

Por que decidiu estudar os vinhos brancos e seus aromas?

Os aromas exercem um papel importante na degustação. Um vinho sem aromas parece também sem gosto. Nos anos 1980, os brancos, especialmente os de Bordeaux, eram pouco aromáticos e apresentavam irregularidades de um ano para outro. Eram sempre uma surpresa, muitas vezes má, algumas vezes boa, mas o produtor tinha poucas possibilidades de intervenção. No vinhedo, não havia muitas informações sobre o tipo de solo, porta-enxertos, desfolhagem. A gente não sabia o que fazer para ter uma regularidade na expressão dos aromas. O vinho branco envelhecia rápido, e mal. Isso me levou a iniciar as pesquisas.

Por onde começou?

Na universidade, comecei a pesquisar os constituintes odorantes do vinho. Observei que em todas as grandes cepas, os aromas da uva se percebem no vinho e não nos grãos propriamente ditos. Os aromas de Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Merlot ou Syrah são notados no vinho e não nas uvas. Quando você prova, todas elas são similares. A uva é muda, o vinho é que fala. Creio ter sido o primeiro a estudar isso no mundo científico. Quais são as moléculas odoríficas do vinho responsáveis pelos aromas de uma casta? Como eu produzia brancos bordaleses, escolhi estudar a Sauvignon Blanc. Foi um trabalho duro, pois do ponto de vista químico os aromas, ainda que intensos, são um traço, aparecem em quantidades muito pequenas no vinho.

O que descobriu?

Percebemos que o componente odorante da Sauvignon Blanc é sulfuroso, tem algo de enxofre, e pode ser encontrado também em frutas, plantas, vegetais. São aromas bastante sensíveis, pois seus componentes se oxidam facilmente. As moléculas do café torrado, que têm um odor forte, pertencem à mesma família. Os aromas do maracujá, embora diferentes, também são quimicamente deste grupo. Os componentes sulfurosos, quando se oxidam, reagem com o tanino encontrado na casca da uva. Compreendemos então que não é possível produzir regularmente vinhos com a tipicidade da Sauvignon quando a casca possui muito tanino. Por exemplo, nos climas quentes ou secos. São condições boas para os tintos, mas não para brancos aromáticos, frutados e de guarda. Esse é o segredo: um bom vinho branco é feito antes de tudo com uvas que contêm poucos taninos na pele. Película taninosa resulta em aromas fracos.

Como isso pode ser usado na vinificação?

Isso vale para qualquer uva e vinho. Descobrindo a partir de quais moléculas inodoras da uva os compostos odorantes se formam, a gente pode guiar as operações de vinificação para ressaltar os aromas do vinho. Nas pesquisas, identifiquei também o que chamamos de precursor dos aromas, algumas pistas que nos mostram seu perfil. A vinificação é uma espécie de revelação do caráter escondido no fruto. Mas há outros fatores, claro.

Quais, por exemplo?

A oxigenação, a temperatura da fermentação e principalmente o micróbio que provoca esta transformação química, a levedura. Combinei o estudo do metabolismo das leveduras com a química analítica dos aromas. Minha equipe foi a primeira a mostrar que é a levedura da fermentação alcoólica que gera ou amplifica no vinho os aromas da fruta. Uma determinada levedura faz melhor esse trabalho do que outra. É preciso determinar qual a mais eficiente, selecionar as leveduras.

Mas hoje há quem defenda o uso das leveduras naturais, selvagens.

Todas são selvagens, no sentido de naturais, mas é um engano achar que são todas iguais. Elas foram testadas, selecionadas e guardadas. Quando se trabalha com fermentação espontânea, não há nenhuma garantia de que as leveduras que vão fermentar o vinho este ano são similares às do ano passado. Fica tudo ao acaso. Por exemplo, para fazer um bom champagne ou um bom Sauvignon Blanc, é preciso usar leveduras resistentes à alta acidez. Muita gente fala sem saber. A origem de sua certeza é sempre a ignorância. O conhecimento alimenta a dúvida, o que é diferente.

Com estas mudanças, o vinho melhorou?

Consideravelmente. Tem expressão aromática. Outra coisa que mudou foi o amadurecimento. Mostramos que o contato do vinho com o depósito de leveduras é importante para conservar os aromas. As leveduras, mesmo quando mortas, interagem com o oxigênio, mil vezes mais rápido que nos vinhos que não repousaram sobre as lies. Se o oxigênio entra, ele não vai se combinar com os constituintes do vinho e sim com as leveduras. Elas liberam no vinho um composto natural benéfico, a glutation, um antioxidante poderoso.

Para o repouso com as leveduras é melhor usar tanques de aço ou barricas?

O risco do aço inoxidável é a redução dos odores e nas barricas novas pode haver oxidação indesejável. Prefiro um meio termo. Trabalho com barricas usadas e muito pouco com novas. Uma aluna minha pesquisou a utilização de tanques de aço, mostrando que é melhor adotar cubas de tamanho menor, pois é o peso do vinho sobre as leveduras que cria um meio redutor.

Funciona assim também nos vinhos tintos?

O papel das leveduras é o mesmo. Mas há pouquíssimos estudos sobre os tintos. Os aromas se comportam da mesma maneira para os brancos, tintos e rosés.

A maturação é importante?

Há três níveis de aromas, em função da maturação do cacho. Os grãos verdes têm o mesmo odor que as folhas, um caráter vegetal. Geneticamente, fomos selecionados como seres que comem frutos e não folhas. Instintivamente, o consumidor vai rejeitar vinhos feitos com uvas verdes. No estágio seguinte, dizemos que a fruta está madura, e aí cada uma delas tem aromas diferentes, como a cereja, o morango, o abacaxi, o maracujá. Sua personalidade está no fruto fresco. Mas se a maturação for além disso, chegar ao terceiro estágio, a uva perderá parte de seu frutado. É o fruto cozido, sobremaduro.

Em que condições isso acontece?

Depende do clima, da insolação e até da própria casta. Há variedades que passam da etapa verde direto para a sobrematuração. O ideal é que a uva atinja a segunda etapa, para apresentar frutado perfeito. Isso acontece quando a cepa está bem adaptada ao clima. Hoje vemos muitos vinhos produzidos com uvas praticamente cozidas. Isso acontece no Novo Mundo, mas também na Europa. Os vinhos de guarda não são feitos nem com frutas verdes, nem com frutas sobremaduras, e sim com uvas no ponto certo. Embora seja menos grave ter uvas passadas do que verdes, seus vinhos são menos apaixonantes para degustar do que aqueles feitos com frutos frescos.

O que acha dos vinhos com alta gradação alcoólica?

É preciso desconfiar das uvas colhidas no verão, em locais muito quentes. Os melhores vinhos nascem de cepas com maturação lenta, o que não proporciona grande concentração, nem quantidade excessiva de açúcar, e em consequência, de álcool. Tecnicamente, podemos reduzir a gradação alcoólica das uvas sobremaduras, mas não o gosto de cozido. Uma uva que amadurece lentamente proporciona vinhos frutados, que têm o frescor da juventude e grande capacidade para envelhecer bem. Depois de algum tempo de garrafa, apresentam bons aromas de redução. Nos brancos, percebemos notas minerais, trufadas. No estágio final, há notas oxidativas, como mel, nozes, cera. No caso dos tintos, o envelhecimento oxidativo apresenta nuances de ameixa em compota, de figo. No extremo, a oxidação é que mata o vinho.

Por último, uma curiosidade. O sr. está produzindo vinho no Japão?

É quase uma diversão. Tenho ido muito ao Japão e fui convidado a fazer vinho. Lá as condições são muito difíceis para as uvas viníferas européias, por causa da umidade. Mas há uma uva nativa resistente, a Koshu, plantada nas encostas do monte Fuji. Faço um vinho branco minimalista, com apenas 9º a 10º de álcool, que na minha opinião tem tudo a ver com a sutil culinária japonesa.

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