Alguns destaques do guia Descorchados 2018

Alguns destaques do guia Descorchados 2018

Estancia Uspallata, a 2.000 m de altura

No lançamento da edição brasileira do guia Descorchados 2018, na semana passada, em São Paulo, os destaques foram os vinhos chilenos, argentinos, brasileiros e uruguaios pontuados pelo jornalista chileno Patricio Tapia com notas acima de 93, em 100. Entre os mais de 4 mil vinhos provados, o guia indica algumas centenas com 93 pontos e acima disso.

Já se disse muitas vezes que pontuações de guias não devem ser tomadas ao pé da letra. No caso de Patricio Tapia, muitos críticos acham que às vezes ele se entusiasma com determinados vinhos e concede a eles notas excessivamente elevadas. Pode ser. Mas é inegável que Patricio é sério, competente, provador incansável e, concordando-se ou não com seus critérios, há a certeza de que os campeões por ele indicados são realmente vinhos de categoria superior, dos melhores que podem ser encontrados no Chile, Argentina, Brasil e Uruguai.

Descorchados chega à 20ª edição. A versão brasileira é organizada pela Editora Inner, de Christian Burgos, publisher também da revista Adega – cujo editor de vinhos, Eduardo Milan, há sete anos degusta boa parte dos rótulos do guia com Patricio. Entre as estrelas do Descorchados 2018, destacamos dois vinhos com histórias bem diferentes entre si. Um é o espumante brasileiro Adolfo Lona Orus Edição Especial Silvia 1972 Nature Rosé Clair, merecedor de 93 pontos; e o outro, o tinto argentino Estancia Uspallata Malbec 2015, que recebeu 95.

 

Adolfo Lona

O argentino Adolfo Lona, hoje radicado em Porto Alegre, um dos melhores enólogos em atividade em nosso país, participou da renovação da vitivinicultura brasileira iniciada nos anos 1970. Entre outras coisas, naquele período várias multinacionais de vinho decidiram investir por aqui, ajudando a impulsionar nossa incipiente cultura do vinho com novas práticas, tecnologias e equipamentos modernos.

Grupos como Heublein, Seagran, Almadén, Cinzano e Chandon instalaram-se no Rio Grande do Sul. Em 1973, a conhecida empresa italiana Martini & Rossi também montou sua vinícola em Garibaldi, na Serra Gaúcha, destinada inicialmente a elaborar vinho base para seus vermutes. Algum tempo depois, deu novo passo, lançando o rótulo Château Duvalier, que logo se tornou bastante popular.

Para cuidar do desenvolvimento de seus vinhos finos, por volta de 1974 o grupo contratou um jovem enólogo argentino, Adolfo Alberto Lona. Nascido em Buenos Aires e formado na Faculdad Don Bosco de Enologia, em Mendoza, Lona pretendia passar apenas alguns meses em Garibaldi. Acabou fincando raízes na cidade.

Silvia e Adolfo Lona

Atuando na Serra Gaúcha, ele realizou um trabalho de profundidade na adega e nos vinhedos. Para conseguir vinhos melhores, incentivou os viticultores parceiros a adotar novos manejos no campo, a reduzir as quantidades em favor da qualidade, a fazer a reconversão dos vinhedos de latada para espaldeira. A Martini & Rossi, que depois virou a Bacardi Martini, foi das primeiras empresas a pagar mais por uvas diferenciadas, premiando os bons produtores.

Lona criou os espumantes De Greville e, em 1978, a linha de tintos, brancos e rosé Baron de Lantier, logo um sucesso de vendas. Diretor técnico da vinícola, permaneceu por 30 anos no grupo. Ao se aposentar, não parou.

Além do talento como enólogo, Lona tem como característica a simpatia, um invejável bom humor e enorme generosidade para compartilhar seus conhecimentos. Influenciou toda uma geração de enólogos no Brasil e ajudou a formar centenas de enófilos em cursos de fim de semana e degustações pelo país.

Em 2004 resolveu usar toda sua experiência para produzir os próprios espumantes em Garibaldi, de feição artesanal, sempre com muito capricho. A preocupação com a qualidade vai desde a vinificação do vinho base até a finalização, seja pelo método Charmat (em que a formação das borbulhas acontece em grandes tanques fechados), seja pelo processo clássico (em que a tomada de espuma acontece dentro da própria garrafa.

Por este último método são produzidos os rótulos Adolfo Lona Brut, Nature, o incrível Orus Rosé Pas Dosé e, agora, o Orus Edição Especial Silvia 1972 Nature Rosé Clair – o espumante que encantou Patricio Tapia no Descorchados 2018. Depois de lhe conceder 93 pontos, o jornalista chileno escreveu sobre o vinho:

“Um dos pilares do trabalho meticuloso e rigoroso de Adolfo Lona, este base Merlot elaborado como rosado e Pinot Noir produzido como branco, tem um ciclo de produção de 40 meses, 30 dos quais são de estágio sobre as borras na garrafa e 8 de envelhecimento depois do dégorgement. Não tem adição de licor de expedição, portanto, seu grau de açúcar é próximo de zero. E isso se nota. É um vinho grande em porte. Monumental em estatura, seco, austero, intenso. Uma parede de borbulhas que se elevam com pompa”.

Lona informa apenas que seu espumante rosé parte de um vinho base feito com Merlot e Pinot Noir, duas uvas tintas. A presença de Merlot não é usual na composição de espumantes. Mas é um segredo de especialista.

Apesar de seco e estruturado, o Orus Edição Especial Silvia 1972 Nature Rosé Clair não tem nada de agressividade. Ao contrário, é macio e tem suavidade na boca. Segundo Lona, essa característica é proporcionada pela Merlot, que ajuda a reduzir a acidez do lote e torna o espumante mais redondo. A propósito, o nome do vinho é uma homenagem à mulher, Silvia, com quem Lona está casado há mais de 45 anos e com quem tem três filhas.

 

Estancia Uspallata

Já aqui temos uma história bastante recente. A vinícola Estancia Uspallata, de Ariel Saud, foi criada em 2008 e seus vinhos ainda não têm distribuição no Brasil. São apenas 4 hectares de vinhedos – dentro de uma propriedade imensa, com 44 mil hectares, no vale de Uspallata, em Mendoza.

Para entender a história, vamos começar do início. Ariel Saud, empresário de Buenos Aires, onde tem uma firma de engenharia especializada em hidráulica, conta que seu pai gostava de comprar terras. Na década de 1980, adquiriu um grande campo no valle de Uspallata, que fica no norte da província de Mendoza, perto da fronteira com o Chile. Mas a família nunca se interessou por conhecê-lo.

Pouco depois da morte do pai, em 1999, Ariel foi esquiar na região com amigos e decidiu parar em Uspallata. Ficou impactado com o que viu: uma região selvagem, um deserto na imensidade da Cordilheira dos Andes, rodeado de picos de 5 mil metros de altura, em meio a uma paisagem colorida e deslumbrante. Convenceu os irmãos a investirem no Valle de La Quinta e ali implantou um projeto turístico bem sucedido, com pousada, restaurante e muito espaço para descanso e lazer.

Em Uspallata, projeto turístico e vinha

A construção ficou pronta em 2005. O pai sempre dizia que a região era especial para vinhos. Em 2008, depois de visitar outras adegas e vinhedos em Mendoza, Ariel decidiu plantar sua própria vinha. Foi um desafio. As terras ficam a 2.000 m acima do nível do mar e muita gente dizia que ele era louco, que naquela altitude as uvas nunca iriam amadurecer plenamente, além dos riscos de geadas.

Mesmo assim, seguiu em frente e em 2009 implantou o vinhedo mais alto de Mendoza. Começou experimentalmente, com 1 hectare, em que 90% das  mudas eram de Pinot Noir, por ser variedade de ciclo curto, e somente 10% de Malbec, sem muitas expectativas. O resultado surpreendeu e no ano seguinte plantou mais um ha de Malbec e outros 2 ha de Pinot Noir.

Nesta fase inicial surgiram realmente muitas dificuldades – ventos fortes que prejudicavam a brotação, ataque de formigas e até uma invasão de coelhos, que comiam tudo pela frente – vencidas com esforço e determinação. As vinhas são irrigadas por gotejamento, a partir de um lago construído na propriedade, que reserva a água proveniente do degelo dos Andes e de nascentes locais. A primeira vindima aconteceu em 2013, pequena em quantidade, mas com muita qualidade.

Um salto ocorreu em 2015, quando Ariel se associou ao respeitado enólogo Alejandro Sejanovich. Hoje a vinícola produz três rótulos, dois tintos de Malbec e Pinot Noir, e um espumante nature, todos bem pontuados pela crítica internacional. Entre eles, o Estancia Uspallata Malbec 2015, nota 95 no guia Descorchados 2018. Sobre este vinho Patricio Tapia escreveu:

“A fruta deste Malbec é vermelha intensa, com uma acidez firme e um dulçor encantador, mas ao mesmo tempo muita energia de taninos e um lado mineral muito marcado. Ainda com produções muito pequenas, por trás do vinhedo de maior altura em Mendoza está a mão de Alejandro Sejanovich, um dos enólogos mais inovadores hoje na Argentina”. É realmente um grande vinho.

 

 


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